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Na manhã que se inicia

Escolhe a bandeira e renuncia

Uma das minhas preocupações com a situação política atual não está unicamente fundada nas decisões que serão tomadas pelo “eleito” nos próximos anos. Mas em questões históricas que, há algumas décadas, foram sendo passadas camufladamente de geração em geração, como uma semente plantada, “emudecida” em terreno fértil, silenciosamente, em tradições conservadoras. O brasileiro, como homem cordial que é, tem neste momento a possibilidade de externalizar, com todo seu “cárdio”, voz, corpo, valores, tudo aquilo que estrutura o Brasil como uma nação de guetos. Declaradamente. Legalmente. Religiosamente. Patrioticamente. Economicamente. Historicamente. Gueto. É bom que cada um se coloque no seu lugar, para que tudo funcione perfeitamente bem. Marielle Franco foi alguém que cometeu a audácia de sair dos vários guetos que ocupava, o gueto da mulher, o gueto da negra, o gueto da lésbica. Rafael Braga foi condenado por ser negro e por ser pobre, o que o impedia de estar em um local de manifestação, em um lugar de voz. Ou mesmo Cirleudo Cabral Monteza Manchineri, indígena de um ano de idade, morto com um tiro mesmo antes de tomar conhecimento que não teria terra para viver. O que temos aqui não é obra do acaso, uma injustiça esporádica ou um devaneio político, temos exemplos do que estrutura a base social brasileira. O avião do voo para o progresso foi abatido no Centro-Oeste. Quando se fala na possibilidade de escolha da bandeira, para uma efetiva renúncia (“Na manhã que se inicia Escolhe a bandeira e renúncia”), fala-se da negação da impossibilidade de escolha do local de nascimento. A pátria deixa de ser o local de nascimento e passa a ser o local de manifestação (manifestação como modo de ser publicamente), não apenas como nação, território geográfico, naturalidade, mas como modo de vida, de cultura, de vir a ser. Quando Cildo Meireles traz no trabalho “Sal sem carne” uma outra perspectiva para a ideia de gueto – na qual o gueto deixa de ser o local dos que estão à margem social e passa a ser protagonista da sua própria cultura –, provoca uma inversão, em que o gueto passa a ser autônomo, produtor de cultura e de informação. A história do negro no Brasil não nos revela isso? O que é o samba senão “o canto de liberdade dos oprimidos” cantado hoje como suprassumo da cultura, cantado inclusive pelos que oprimem? Ou mesmo a capoeira, não seria um exemplo? Ou grande parte da base da alimentação brasileira, não é indígena? O Brasil é uma nação de guetos, negro, mulheres, gays, pobres, comunidades, indígenas, mães solteiras, trans, operários... Declaradamente. Legalmente. Religiosamente. Patrioticamente. Economicamente. Historicamente. Gueto.

Adendo: No processo de construção do trabalho “Escolhe a Bandeira e Renuncia”, vim pensando em uma série de referências de obras e artistas, algo que não fosse meu, mas um conjunto de referências, como uma apropriação de vozes múltiplas. “Na manhã que se inicia Escolhe a bandeira e renuncia” é uma referência à música “Tropicalea jacta est”, de Tom Zé: “Aquela manhã que se inicia Desfolha a bandeira e renuncia”. Esta, por sua vez, foi tomada por Tom Zé da música “Geleia Geral”, de Torquato Neto: “Um poeta desfolha a bandeira E a manhã tropical se inicia”. Ainda, a composição formal do trabalho remete à bandeira “Seja marginal Seja herói”, de Helio Oiticica.

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