top of page

Sal de Cura

O trabalho é formado pela junção de três materiais: sal grosso, carne seca e cápsulas de munição.

 

O trabalho se dá, inicialmente, na relação físico-química estabelecida entre os três elementos, submetidos à ação do tempo, tendo como elemento central o sal, que, em contato com a carne, provoca um processo de desidratação por osmose, prolongando o período de conservação da carne. Esse processo também é conhecido como “cura” – a palavra, em português, refere-se tanto a processos de conservação de alimentos como também a métodos específicos de tratamento ou reestabelecimento da saúde. O sal sobre os objetos metálicos (cápsulas de munição) provoca uma reação contrária à da carne, promovendo oxidação e corrosão do material. O sal como elemento de cura também remete a processos ancestrais, ritualísticos e religiosos de matriz afro-brasileiras.

Montagem do trabalho "Sal de Cura"  para a exposição "Vozes do Silêncio", na Galeria Antonio Sibasolly. Anápolis-GO.

Depois de mais de seis meses em viagem, recebo de volta em casa o trabalho “Sal de Cura”. E, pela primeira vez na minha trajetória artística, eu me senti extremamente abalado emocionalmente por um trabalho que eu fiz. Cheguei a passar algumas horas deitado, angustiado. Não tive esse sentimento por arrependimento de ter feito o trabalho ou por ter mudado meu pensamento sobre ele, mas por me sentir afetado pela proposta. A questão do tempo em “Sal de Cura” é tão importante quanto os outros elementos que o compõem (sal, carne e munição). Depois desse tempo que o trabalho passou em exposição, foi possível ver com calma a ação do tempo sobre ele. Agora não estou olhando para as garrafas e pensando no objeto, agora estou pensando em tempo de vida. É como se estivesse olhando para cada garrafa como um corpo e vendo a ação do sal sobre a carne, como em uma tentativa desesperada de conservar a carne ao mesmo tempo que se corrói a munição. Essa sempre foi a questão do trabalho, mas agora, depois da ação do tempo, a visualidade invoca uma radicalidade, como se fosse possível ir no cemitério e, no lugar de ver os túmulos, visse os corpos no estágio de decomposição. A imagem de uma pessoa nessa situação sempre me perturbou ao receber a notícia do falecimento de um conhecido e, agora, parece que criei algo que tira essa imagem da mente, dando materialidade para ela. Ao fazer esse trabalho, pensei nele como possibilidade de vida, como possibilidade de se reinventar, possibilidade de manter a memória daqueles que se foram, principalmente por violência. Uma tentativa de inverter a ação do metal sobre a carne, de falar que, com a vida, sempre há uma possibilidade. Não sei mais como lidar com o trabalho, ele tem vida própria, como toda “obra” de arte deveria ter. Mas sei que, daqui a um mês, quando olhar para ele de novo, será outro, outro corpo, mais corpos. Pela condição política atual do nosso país, a fabricação de corpos, e não de vida (como possibilidade), está sendo institucionalizada, por bens, pela propriedade, por Deus, pela família, todos motivos que deveriam remeter à vida, ao sal da vida, ao sal que cura.

bottom of page