Na balança de Anúbis
Rachel Vallego
Texto para o catálogo do Prêmio Pipa 2023
Link Pipa: https://www.premiopipa.com/2023/10/ocupacao-dos-artistas-premiados-do-pipa-2023-helo-sanvoy/
No antigo Egito, acreditava-se que após a morte as pessoas, independentemente de sua origem ou posição social em vida, eram julgadas no Tribunal de Osiris, e seu coração seria pesado na balança de Anúbis. De um lado o deus com cabeça de chacal colocava o coração do morto e, do outro, uma pena de avestruz, símbolo da deusa Maat, senhora da verdade. Assim, para entrar no reino da além-vida, seu coração precisaria ser tão leve quanto uma pluma.
Essa imagem traz uma dimensão fundamental da obra de Helô Sanvoy: o equilíbrio entre simbólico e formal, razão e sentimento. Acima de tudo é a perspectiva da plenitude de quem consegue equilibrar um trabalho profundamente crítico, intenso, provocativo, que exige presença e reflexão, e o faz de forma tão serena quanto contemplar uma paisagem.
A leveza não é algo leviano, tão pouco deve ser confundida com docilidade. Em “Refazendo Mitos”, 2020, Sanvoy retoma o gesto do bandeirante Anhanguera, ateando fogo a sua estátua localizada na frente do parque Trianon, em São Paulo. Bartolomeu Bueno da Silva ficou conhecido por ameaçar os indígenas a atear fogo sobre a água dos rios, quando na verdade utilizava cachaça, e assim recebeu a alcunha, do tupi, “diabo velho” ou “espirito maligno”. O gesto é fundamental na poética de Sanvoy e está sempre imbuído de profundo significado simbólico. A história se mantém viva, seja na imposição de uma imagem em praça pública, seja na ação poética que faz valer essa história.
Em “Casa de Ferreiro”, 2021-2022, Helô Sanvoy opera uma inversão ao criar uma faca cuja lâmina é de madeira pau-brasil, e a empunhadura de aço inox. Essas obras estabelecem um dos cernes de seu trabalho: objeto e título são indissociáveis em sua produção. Sanvoy torna material o imaterial. Ao buscar nos materiais mais elementares e nos saberes tradicionais, como o ditado popular “casa de ferreiro, espeto de pau”, ele provoca um ruído que atinge o cerne de uma ideia do que é ser brasileiro. O mesmo procedimento ocorre em “Pau de tinta/ Pau de fogo”, onde um cartucho de munição é preenchido com um projetil de madeira pau-brasil. Desde a matéria escolhida, o pau-brasil – árvore da qual origina o nome de nosso país –, à construção de significado que os objetos provocam, uma vez que o extrativismo do pau-brasil inaugura nosso primeiro ciclo econômico e aponta para as consequências vividas pelo país até hoje. A proibição da manufatura em território brasileiro instala o modelo de econômico de exportação de matérias primas que são levadas pelo colonizador. Nós somos os próprios ferreiros usando espeto de pau, despidos de nossas riquezas e fadados a nos adaptarmos com o que restou.
Evidentemente, o que restou não é tão pouco assim. Contudo, outros ciclos exploratórios vieram, da cana de açúcar, do café, do algodão, do ouro, da borracha, que são também elementos que permeiam o vocabulário poético de Sanvoy. Em “Gamela”, 2021-2022, Sanvoy reúne um bloco de pau-brasil, borracha, folha de ouro, chumaços de algodão, punhados de café e açúcar sobre um gamela moldada em carne seca. É a carne que suporta nossas riquezas, a carne do gado de pecuária que devasta florestas, a carne cortada dos escravizados forçados a trabalhar, a carne seca daqueles que não tiveram direito ao fruto de seu trabalho, a secura dos rios e das matas devastadas, a secura dos retirantes que fugiram para os grandes centros com promessas de trabalho e esperança de um futuro melhor, mas que encontraram novas formas de exploração. Todos figuram ali, naquela gamela que ostenta todas as nossas riquezas, ao mesmo tempo que provoca uma sensação de asco. Ojeriza de nós mesmos? Daquilo que nos tornamos? A carne de “Sal de cura”, 2014-2018, revela algo desse processo. O sal usado para preservar a carne recebe também cartuchos de munição. Da violência ancestral à contemporânea, a carne nunca é poupada.
Sanvoy volta a expor nossas entranhas, espalhadas sobre uma grade de metal em “Âmago encarnado”, 2022. O âmago encarnado é a denominação da parte mais interior do pau-brasil, de onde é extraído o pigmento tão valioso que justificou a quase extinção dessa árvore em território nacional. O pó de café e pigmento de pau-brasil tingem o algodão entramado na grade que sustenta todos os elementos. Mas a grade também nos pergunta se estamos dentro ou fora. O que nos separa do outro é também o que nos separa de nós mesmos? Nossa glória e nosso colapso resumidos. É a brutalidade do fato, como diria Francis Bacon sobre sua obra “Painting”, 1946, da coleção do MoMA-NY.
É também o que “Não desce pela garganta”, 2021-2022, série em que um nó de forca feito com corda de cânhamo é apresentado como um colar com um pingente de pau-brasil, talhado com números da violência contra grupos minoritários em diferentes períodos da história brasileira. A partir da corda de cânhamo, Sanvoy recupera duas expressões correntes: o “nó na garganta” e “com a corda no pescoço”. A primeira tem relação com um sentimento de forte emoção, enquanto a segunda se refere a situações de grande pressão ou de uma experiência limítrofe. Ao cruzar com dados como a quantidade de mortos durante a pandemia de covid-19, ou que a cada 23 minutos um jovem negro é morto no Brasil, o artista provoca as sensações das expressões de maneira quase sinestésica.
A corda de cânhamo lembra também outro material que Sanvoy utiliza com frequência, as tranças de couro, que surgem em trabalhos como na série “Lucidez Difusa” e nas performances “Empelo”, 2023, e “Estão sendo tecidos”, 2018. O couro é o corpo, a pele do boi, que encontra múltiplos usos sociais. Mas é também a trança do cabelo, que evoca uma experiência afetiva e familiar quando mãe e filho se sentam para cuidar um do outro. O trançar os cabelos é um gesto ancestral, e na performance “Estão Sendo Tecidos”, dona Maria Conceição compartilha histórias de sua infância e de como a mãe dela cuidava de seus cabelos. O vídeo permite aproximar-nos de um momento intimo e sereno, mas que foca na tensão necessária ao ato de trançar e as mãos que puxam, separam e penteiam os cabelos.
Ouvimos as histórias de uma infância na roça, a rotina dos cuidados do cabelo, a banha de porco e o cheiro do óleo perfumado que só era usado em ocasiões especiais. As memórias do trabalho no campo, do isolamento da fazenda onde ver um caminhão passar era um grande acontecimento. Quando as tranças são finalizadas, Sanvoy devolve-as a terra. Num ato de plantá-las, enterra sua própria cabeça e se transforma no homem-árvore que brota daquele chão. Aqui tudo é poesia, mas do tipo que sobe num calafrio pela espinha.
A tensão necessária para as tranças é retomada na performance “Empelo”, 2023, que surge de uma provocação sobre a origem do nome da cidade de Pelotas, RS. A pelota era uma pequena embarcação feita de couro e puxada pela boca para atravessar os rios da região. De costume indígena, se tornou uma prática comum, retratada inclusive por Debret, na qual negros escravizados nadavam puxando pela boca seus senhores para atravessar o rio. Na performance, Sanvoy aparece nu – em pelo – e seus cabelos estão trançados junto a tranças de couro presas na parede. A ação consiste em tencionar as tranças na distância exata em que seus pés sobem pela parede e seu corpo fica suspenso, formando um triangulo no ar.
São poucos segundos no qual acompanhamos o gesto de segurar o cabelo tramado ao couro que sustenta toda a tensão e peso do corpo, que é irremediavelmente atraído de volta ao chão. A cada tentativa, a gravidade nos lembra que estamos todos submetidos a ela, somos todos filhos dessa terra. Mas isso não impede Sanvoy de desafiá-la de quando em vez, de buscar o tênue momento em que seu corpo, leve como uma pluma, sustenta-se.
É importante retomar a dimensão formal de seu trabalho, o gesto nunca é gratuito, e além de simbólico, se estrutura num pensamento conceitual que cria materialidade e visualidade. Nunca mera ilustração, em Sanvoy a ideia toma forma, passa a estar no mundo, a provocarmo-nos, desestabilizarmo-nos. Nada é tão abstrato quanto a palavra, e fala tão alto quanto uma imagem. Seu coração sim, é mais leve que uma pluma.
Rachel Vallego