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Conversa entre Luiz Camillo Osorio e Helô Sanvoy

Lick Prêmi Pipa:https://www.premiopipa.com/2023/10/ocupacao-dos-artistas-premiados-do-pipa-2023-helo-sanvoy/

LCO – Fale como foi o começo de sua trajetória. Ela se deu junto ao Grupo EmpreZa? Como é a relação entre o coletivo e seus trabalhos individuais?

Acredito que a questão de como surge uma trajetória em arte é bem incerta. Cada vez mais, tenho entendido que essa coisa de fazer arte vai ganhando corpo durante a vida, sem momento específico. Talvez esteja relacionada a uma vontade de lidar com os mistérios das coisas do mundo e/ou com determinadas realidades internas. Durante a infância, em Goiânia, eu morava ao lado do Morro da Serrinha. No topo do morro, tem uma torre de concreto. Pela sua altura e para quem a olha de baixo, dá uma sensação de que a torre está balançando e que, a qualquer momento, ela vai cair. Passava tardes no quintal de casa olhando para a torre, vendo-a balançar de um lado para o outro, esperando o instante em que essa estrutura iria cair. Essa imagem está carregada de questões abordadas na produção de vários artistas. Penso que ter dedicado momentos percebendo esse balançar da torre já fazia parte dessa trajetória. Hoje entendo que já era um processo de maturação do olhar e do pensamento, mesmo sem ter contato com alguma instituição formal de arte. De modo mais prático, o que chamamos de “tornar-se artista”, na minha opinião, está ligado a uma atuação em um meio. É passar a atuar socialmente com as questões e com a história desse meio. Nesse sentido, essa atuação teve início em 2009, quando entrei no curso de Licenciatura em Artes Visuais na FAV/UFG. Nesse período, comecei a buscar uma produção e a conhecer os espaços de arte com os quais eu não tinha contato. Logo nesse início, já busquei experimentar linguagens e produzir trabalhos. A primeira participação em exposição aconteceu em 2010.

O Coletivo Grupo EmpreZa (GE) surgiu no ano de 2001, também na FAV/UFG. Inicialmente, era formado como grupo de estudo e pesquisa em performance e era composto por professores e estudantes. Logo, alguns integrantes desse grupo sentiram a necessidade de não apenas estudar, mas também realizar ações. Meu contato com o grupo se deu em 2009. Fui aluno de uma disciplina ministrada pelo Paulo Veiga Jordão, um dos membros do coletivo. Nesse mesmo período, acabei conhecendo outros membros e, em 2011, fui convidado pelo GE para colaborar com a apresentação do coletivo na exposição “Caos e Efeito: Contra-Pensamento Selvagem”, no Itaú Cultural. Pouco tempo depois, fui convidado a integrar o coletivo. 

As duas produções se deram de maneiras independentes. Após a minha entrada no coletivo, continuei encarando as duas pesquisas desse modo, buscando períodos de dedicação para cada uma. Fora essa postura, existe uma contaminação, que ocorre a partir dos processos de vivência. Com o tempo, fui aceitando de forma menos conflituosa esse processo. E com esse tempo, no trabalho do coletivo, foi possível perceber a presença individual de cada membro dentro de cada trabalho, mesmo a autoria sendo diluída dentro do GE e mesmo com o processo de criação passando por discussão e decisão coletivas. Individualmente, não existe uma colaboração direta com meu trabalho. O coletivo acaba vendo minha produção quando apresento em exposição ou quando recebo alguém em casa. À parte esse diálogo, são duas produções independentes.  

LCO – Há uma exposição sempre radical do corpo nas performances do EmpreZa. Isso de alguma maneira se desdobra no seu trabalho, mas me parece que a dimensão escultórica ganha mais protagonismo, com os materiais ganhando autonomia e energia plástica. Faz sentido isso?

É possível que eu tenha adquirido uma postura mais radical com a vida nos anos 90, o que era um tanto comum entre as pessoas da minha idade diante dos “dramas” e das dificuldades nesse período. Indignação mesmo. E a sensação de estar lutando contra o mundo por sobrevivência e por dignidade. Em um campo mais sensível nesse período, e com uma linguagem áspera, estava o rap: Cirurgia Moral, Consciência X Atual, Álibi, Facção Central, Guind’Art 121, Racionais, Realidade Cruel, entre outros. Essas questões, de um certo modo, foram somadas a essa radicalidade. Quando conheci o trabalho do GE, tive uma identificação. Ainda não sabia o que era performance. Foi durante uma aula que acabei conhecendo Chris Burden, Marina Abramovic, Grupo EmpreZa, Valie Export, Grupo Fluxus, no mesmo dia. Tive a sensação de estar diante de uma entrega, de artistas que se davam à linguagem. De se desdobrar, e não fazer dos seus limites o limite do trabalho.

Com os materiais, não sigo um modo único de trabalhar. Entendo que cada trabalho tem suas demandas, ou seja, não fico preocupado se o próximo trabalho necessita estar atrelado ao anterior. Procuro lidar com as demandas da ideia. Nesse processo, existe uma pesquisa ou um modo de ver o trabalho que é quase intimista. Geralmente toda essa pesquisa fica guardada mentalmente como processo, e o trabalho finalizado vira outra coisa. É como um fluxo de pensamento em que, ali, toda a produção dialoga. Nesse processo é quando vêm os materiais, é quando são feitas as escolhas, o vidro, o couro, o pau-brasil, a palavra, o cabelo. O primeiro trabalho que apresentei em uma exposição foi um desenho, “Sem Título”, com nanquim sobre papel vegetal. O desenho, basicamente, eram as marcações dos textos que estava lendo na graduação. Cada página do texto virava um desenho, e as várias páginas eram sobrepostas. A escolha do papel possibilitava a visão das várias camadas de desenho sobrepostas, o que, de alguma forma, estabelecia uma relação com o tempo de leitura, de ver várias páginas no mesmo instante. Logo, um trabalho que basicamente era linha sobre superfície poderia ser visto a partir das características do material, ou seja, como um objeto, e não como linhas sobre superfície, o que também não deixava de ser. Ou mesmo lidar com coisas sem matéria, como a palavra, que em alguns trabalhos poderia estar na ficha técnica dentre os materiais, como no trabalho “Enquanto Objeto” (2017) ou em “Parabrigar” (2020). O título, em “Parabrigar”, a meu ver, é indissociável do objeto. Com ele, o trabalho é um; sem ele, o trabalho é outro. Falo dele, nessa questão, por ser um objeto que remete a uma ação. O objeto, estando guardado ou sendo lançado, contém sempre essa imanência de ação ativada pelo título. Em 2022, apresentei uma instalação feita com quase 50 peças do “Parabrigar”. Ao fim da exposição, o trabalho ficou disponível para o público levar para casa. Foi um modo de tornar pública a decisão dessa ação, de dar mais uma camada ao trabalho. 

Pensando cronologicamente a minha trajetória, o material veio antes da performance. O primeiro trabalho com a presença do corpo foi o “Estão sendo tecidos”. Ele foi pensado e gravado em 2013, mas, antes mesmo da edição do vídeo, acabei perdendo o HD com os arquivos. Só fui refazê-lo em 2018. Apesar de ser uma ação para o vídeo, a palavra e o cabelo estão presentes como materiais. Ainda em 2013, realizei “Desvio para o branco”, que foi uma intervenção para gerar notícias na mídia. O que estava em questão, inicialmente, seria essa inserção na construção de um imaginário ou de narrativas populares. Essa margem, em que a aparência inicial das coisas vai puxando outras, é um tanto fascinante. Como processo, busco trabalhar com os materiais me atentando às possibilidades simbólicas, sem perder de vista o material como substantivo. É possível abordar questões históricas e sociais com determinados materiais, ao mesmo tempo que é possível trabalhá-lo como matéria. O simbólico e o substantivo do material não são excludentes entre si. Permitir a matéria é dialogar com o átomo, com o grão de areia, com a pedra, com o planeta e com os Pilares da Criação. O corpo faz parte disso tudo também. Uma trança pode trazer toda uma história relacionada à população negra, como também pode levantar questões sobre uma força presente no arranjo da trança, como fez o Tunga. A trança é um produto da atividade humana. O chumbo e a madeira são coisas que existem antes mesmo da língua que os nomeia. Entendo que esses materiais perdem se forem vistos sob perspectivas unívocas. Usá-los é agir para tornar algo presente, algo que seja verbo e transite entre possibilidades.

LCO – Como você pensa a relação entre o performativo e o escultórico na sua obra? Eles se complementam ou se diferenciam?

Especificamente, não tenho essa preocupação. Entendo que, de certo modo, os limites das linguagens em artes são diluídos, a não ser quando há uma escolha pessoal do artista. Tenho pensado que lidar com a liberdade é uma questão fundamental do fazer arte, o que é bastante complicado e moroso, pois, a todo momento, estamos lidando com as imposições externas e internas. E os recortes que surgem dentro da própria pesquisa podem virar limites. Não deixar que o conjunto de trabalhos já feitos seja uma margem, um limite a ser obedecido, e sim uma possibilidade de ampliação.

Tento lidar com a demanda de cada trabalho. E lidar com o que aparece depois, com o que vem junto com ele. Dessa forma, é possível empurrar um pouquinho os limites que aparecem dentro da própria pesquisa. A ideia do que “está sendo” e não do que “é” me parece mais instigante; deixar a coisa se desdobrar no olhar e no debate. De maneira geral, o corpo estático ou em ação no espaço já invoca uma relação escultórica. Uma escultura está atrelada a uma ação, mesmo nos casos em que há uma apropriação de objetos da natureza.

LCO – Como se articulam o artista e o pesquisador para você? A teoria inibe ou libera a criação?

Tenho pensado como os processos e as linguagens, que são mais comuns nas universidades, têm se tornado cada vez mais presentes nos processos em artes – apesar de pensar sobre isso com uma profundidade de poeira de superfície. Fazer arte está ligado a processos de pesquisa, mesmo em casos em que o fazer está voltado para questões mais técnicas e práticas do que para teorias ou métodos não formais ou científicos. Quando a atenção é direcionada para um meio mais teórico, há uma busca de um campo ampliado de referências e suportes, em uma tentativa de se ter compreensões mais amplas da produção.

Compreendendo arte como fazer, como atividade, como ação, o que direciona a produção de quem cria é o conjunto de experiências acumuladas, juntamente com o recorte que vai surgindo com o conjunto de trabalhos realizados. Entre essas experiências acumuladas, está a teoria, e ela é somada às outras. Não estou falando aqui de embasar ou de direcionar a produção a partir de conceitos ou autores. Isso pode engessar o trabalho, quando é feito pelo artista, na minha opinião. Estou falando de estar aberto a dialogar com as coisas que existem. Nesse sentido, vejo uma perspectiva mais interessante.

Nos processos diários, pesquisar coisas pode fazer parte da prática. Na pesquisa com o pau-brasil, os trabalhos foram desenvolvidos a partir de processos de leitura da história dessa árvore. Esse período de leitura, a meu ver, é tão prático quanto pôr a mão na massa. Esse processo de leitura delimitou a forma, a escolha dos demais materiais e os títulos. Claro que não é necessário que quem se coloca diante do trabalho precise saber das leituras que foram feitas. E o trabalho não precisa ser visto sob essa perspectiva. É nesse sentido que algumas coisas se perdem e outras aparecem depois que o trabalho é finalizado.

Entrevista para o Instituto PIPA, Luiz Camillo Osorio, conversa com o artista Premiado, Helô Sanvoy. PIPA 2023.

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