Entrevista Revista Desvio
Entrevista por: Clarisse Gonçalves 1998. Graduação em história da arte em andamento na UERJ. Pesquisadora e historiadora da arte situada no Rio de Janeiro. Atualmente pesquisa manifestações artísticas periféricas, negras, e afrodescendentes no estado do Rio de Janeiro. Bolsista do projeto “Mapeando Arte e Cultura Visual Periférica”.
Link: https://revistadesvio.com/2020/09/11/entrevista-helo-sanvoy/
_ Helô, você nasceu em Goiânia e é licenciado em Artes Visuais, como foi sua trajetória artística durante a graduação?
Sou du Goiás, uai! Nascido e criado. Minha saída de lá foi recente, no início de 2019. De lá vem minha formação e minhas referências, da terra vermelha e dos galhos retorcidos do cerrado, do tempo quente e do céu aberto, dos causos do Geraldinho e das modas de viola. Entrei no curso de Artes Visuais com 24 anos e foi lá, na FAV/UFG, que tive contato com arte contemporânea. A primeira aula, no primeiro dia do curso, foi com o Paulo Veiga Jordão, que entrou na sala de aula com o corpo todo riscado de faca, consequência de uma performance “Risca Faca”, do Grupo EmpreZa, e a aula daquele dia foi sobre performance. Já foi possível ver ali que estava diante de uma situação limiar, e eu gostei dessa situação de entrega. Logo comecei a trabalhar no CCUFG, com o artista/professor Carlos Sena Passos, onde aprendi muito sobre projetos, curadoria, montagem de exposições, formação de acervo, catalogação. Essa formação foi durante a graduação, mas aconteceu à parte do curso. Apesar de o curso ser em licenciatura, comecei a produzir logo no primeiro ano. Foi um período de pisar em solo novo. Infelizmente, o circuito de arte está à margem da vida da maior parte da população. Para mim, esse período foi de novidades, de construção e de trocas com amigos que estavam construindo sua linguagem também, como Yara Pina, Paul Setúbal, Dalton Paula, entre vários outros. A construção da minha pesquisa se deu a partir dessa relação, do encontro com um novo mundo de linguagem, tanto em artes como linguagem acadêmica, e as crises ligadas a esse conflito. Como lidar com linguagens tão complexas em um país com níveis de desigualdade gigantescos, o que também se instaura nos níveis de formação? Minha pesquisa se deu nesse campo da tentativa e impossibilidade de diálogo com a linguagem. Nesse período, participei de algumas exposições, a maioria salões.
_ Diferente da sua graduação, realizada na sua cidade natal, você concluiu seu mestrado na USP. Como se deu esse processo pra você?
Eu ainda não concluí o mestrado, comecei agora em 2020. Esse processo começou com a mudança para São Paulo. Minha companheira, Dheyne de Souza, iria começar o doutorado em literatura na FFLCH em 2019, eu estava pensando em fazer mestrado na ECA e me inscrevi em uma disciplina com a Dora Longo Bahia como aluno especial. Após a disciplina, ingressei no programa de pós-graduação. Estou desenvolvendo um projeto em que relaciono questões históricas como elementos centrais da cultura genocida encoberta sobre o manto de povo gentil e cordial que seria o brasileiro.
_ Helô, você atualmente participa do coletivo de performance Grupo Empreza. Esse percurso é iniciado em 2011, você pode comentar sobre o trabalho do coletivo durante esses anos?
Em 2011 foi quando fiz minha primeira viagem com o coletivo, ainda não era membro, mas fui convidado a participar como “vaca amiga” (é um termo usado pelo coletivo para falar de pessoas próximas). Nessa época, já havia me aproximado de alguns membros através de um projeto de extensão chamado FAV.NOVA Inacabada, era um grupo de estudo e produção em arte. Fiz amizade com Aishá Kanda e com Rafael Abdala, além das aulas que tive com o Paulo Veiga, também conheci o Thiago Lemos no bar. A viagem foi para a exposição “Caos e Efeito - Contra-pensamento Selvagem” no Itaú Cultural, em São Paulo. Na volta da viagem, já me sentia parte do coletivo. Era um período de mudanças para o coletivo, alguns integrantes ainda estavam saindo do grupo.
O trabalho com o coletivo se dá pela sinergia dos membros, por estar junto, beber e conversar. Dessa situação, aparece algo que chamamos de Grupo EmpreZa (GE), dessa situação instaurada na troca, no diálogo, na horizontalidade e nos conflitos. É quase uma entidade que pode ser conflitante ou harmoniosa, ora individualista, ora coletiva, e consonantemente dissonante. E pra gente, que estava entrando, isso aconteceu mesmo em 2012. Fizemos vários encontros, e foi possível notar a presença daqueles que já não estavam no coletivo. É possível identificar de onde veio cada ideia e cada questão trabalhada pelo coletivo e a energia dos corpos presentes. O Grupo EmpreZa é o trabalho mais importante do Grupo EmpreZa. Isso foi o que se destacou na época e é o que ainda se destaca pra gente. Já apresentamos essa ideia em 2014, na individual do GE “Eu como você”, no Museu de Arte do Rio, em 2015 no nosso projeto “Vesúvio”, apresentado como parte da exposição “Terra Comunal”, da Marina Abramovic, no SESC Pompeia, e em 2019, na FAMA, em Itu, em que também apresentamos o coletivo como obra. A base do coletivo é o corpo. Desde o início do GE, o corpo como matéria mínima e fundamental, seus produtos e seus limites.
_ Helô, você participa do coletivo há bastante tempo, como você sente que essa experiência modificou sua percepção e desenvolvimento enquanto artista?
Os atravessamentos são constantes. Hoje consigo perceber, dentro do possível, minhas contribuições dentro do GE, o que somou ao coletivo, como também consigo notar atravessamentos do GE em minha produção. É um conflito constante, pois tento não misturar as duas produções. Porém tem algumas questões que estão além da produção. Vou falar de uma: a ideia da horizontalidade, que no coletivo é fundante. Essa ideia depõe contra a objetividade, a praticidade, a homogeneização, o elitismo, vai contra a ideia do capital (capital aqui como sistema organizado e moderador de éticas e valores). Eu noto o quanto a horizontalidade no GE é estrutural quando tento fazer parte de algum outro tipo de grupo, pois sempre aparece alguma verticalidade, uma voz reparadora, um lapso de razão. Essa horizontalidade é construída não como conceito, mas como prática e só é possível em coletivo. No mais, atravesso e sou atravessado pelo GE o tempo todo, é o que está ao alcance da mão, é o pandeiro, o berrante, o cigarro de palha, a cachaça, o queijo de trança, o uai, o sô, são os corpos múltiplos e coloridos.
_ Algum artista e/ou movimento influenciou, negativa ou positivamente sua produção?
Eu tenho repensado bastante o que assumo como referência, e isso tem sido um ponto de conflito. Pensando como referência aqui “aquilo que constitui”, o que remente muito a relações de poder. Falar de referência não está desligado de um discurso político. Não está desligado a validação de determinados modos de ver o mundo. Citar referencias está ligado a uma construção de discurso, e não apenas de linguagem. Fico feliz que na pergunta está presente a “influência negativa” dessas referências. Toda citação é um recorte, e tenho pensado no que fica de fora quando citamos alguma referência. Quando se fala de Cubismo, não se fala das formas africanas contidas no movimento, mas se fala do pensamento moderno europeu como ponta de lança da humanidade. Tenho pensado em que referências assumir para meu trabalho, pensando que não é bom que haja espaço para ingenuidade. Sou preto comedor de pequi, vindo do cerrado, morando em São Paulo, abaixo da linha do equador. Aqui já aparece um problema: o que se produz em arte no Brasil, se não tiver com um pé no Sudeste, não é nacional, é regional. Isso acaba limitando muito a difusão e a apresentação do trabalho. Tenho pensando em como construir/citar essas referências, ao mesmo tempo que tenho revisto meu trabalho, não em uma tentativa de criar um discurso regionalista, nacionalista ou qualquer coisa do tipo. Mas na tentativa de trazer narrativas com possibilidades, formas e conceitos que não são possíveis de alcançar a partir das referências tradicionais da arte.
_ Apagamentos e silenciamentos são elementos frequentemente presentes dentro do campo da história e também da história da arte, diversas vezes com objetivos políticos e sociais. Tais elementos são narrativas presentes e constantes em sua produção, como se deu o processo de descobrimento de que essas narrativas poderiam ser exploradas em seus trabalhos?
Deu-se na tentativa de dialogar com o meio tanto acadêmico como artístico, o descobrimento de novas linguagens, meio e formas que aparentemente podem apontar para uma multiplicidade, mas que em sua estrutura são também delimitadoras de espaço. E essa produção começou assim, tentando criar processos de diálogo com esse embate, de desejo de leitura, desejo de fala, desejo de pertencimento. O primeiro desenho disparador dessa produção foi o “Sem Título, 2010”, feito com nanquim sobre camadas de papel vegetal. Ele foi feito com as marcações dos textos das disciplinas da graduação. Parte dessas leituras eram feitas no ônibus, no caminho de casa para faculdade, que demorava em média de 1h30 a 2h. Na época, pensei que todo esse processo era bastante significativo, mesmo não ficando aparente no trabalho. Era um desenho feito com marcações e ausências, de um momento de tentativa de leitura em transporte público. Depois acabei fazendo algumas anotações que, resumindo, seria: Uma pessoa não alfabetizada esperando o ônibus, como ela faz para identificar qual é o seu? As respostas podem ser várias, pela cor ou forma do ônibus, parando e perguntando para o motorista, pedindo ajuda para alguém próximo, pelo desenho das letras no painel, pelo número, entre várias outras possibilidades. Nessa imagem, instaura-se uma situação que me ajudou a orientar minha produção, uma que cria toda essa situação de identificação e reconhecimento do ônibus e seu destino que não está embasada na palavra, mas que são vários modos de relacionar e ler o mundo a partir dar forma, da cor, do corpo do diálogo. E a segunda situação traz a violência instaurada nesse momento, em que o acesso ao ensino ainda é uma questão de privilégio decorrente de vários processos históricos. Aqui eu tinha dado início a minha pesquisa, que poderia passar tanto por questões unicamente estéticas, ou políticas, ou ambas.
_ Você comentou sobre a questão do acesso ao ensino. A gente sabe que no Brasil o acesso ao ensino é um processo bastante complexo e problemático, principalmente quando sabemos que nem todos tem acesso ao mesmo. Atualmente, com a pandemia, existimos dentro de uma configuração que cria lacunas ainda maiores quando discutimos o acesso à educação, principalmente quando pensamos na aplicação do ensino remoto, considerando a separação existente dentro do sistema de classes. Como você enxerga tudo isso?
Primeiro, gostaria de falar da grandeza que é a generosidade dos profissionais da educação no Brasil, principalmente dos que estão em contato direto com o cotidiano das escolas, da manutenção, como zelador, faxineira, cozinheira, passando pelos bibliotecários, professores, chegando nos coordenadores e diretores. Qualquer pessoa que estudou em escola pública já viu alguns desses funcionários tirando parte do seu salário para contribuir com o sistema de ensino diretamente, que seja na compra de material ou para dar alguma felicidade em alguma data comemorativa. Não queria romantizar (pois esses profissionais precisam ser tratados como profissionais e serem muito bem remunerados pelo seu trabalho), mas se existe algum ensino básico no Brasil (mesmo que deficitário) ele tem se mantido à base da carne, sangue e suor desses profissionais. Fora eles, a baixa qualidade da educação no Brasil é um projeto! Ela serve a um propósito bem específico com origens históricas, de manter as estruturas de desigualdade social. Estudante de escola pública é educado para ser uma ferramenta, um braço de trabalho. E a tentativa de melhora desse ensino significa mexer na estrutura econômica. Toda vez que se ensaia algum tipo de melhoria, é possível identificar um forte movimento de oposição. Foi assim com o “Programa Nacional de Alfabetização”, em 1964, é assim com a perseguição em vida e póstuma de Paulo Freire, foi assim com os programas de cotas, que não previam a solução para problemas na formação básica da educação, mas possibilitaram a inserção de vários representantes das chamadas minorias no debate público nas diversas áreas do conhecimento. Esse projeto de ensino deficitário está em pleno vapor. A recente taxação de livros proposta por Paulo Guedes é uma afirmação desse projeto. O processo de perseguição às universidades públicas pelo governo federal e o desejo de privatização são sinais desse projeto. O cinismo com que o ex-ministro da Educação, Weintraub, encarava a máquina pública revelou escancaradamente esse projeto. O ensino remoto é mais uma etapa desse processo, é uma forma de baratear os custos, ampliar a má qualidade do ensino, para manter a base exploratória da mão de obra. O ensino deficitário no Brasil é um projeto para manter uma estrutura de exploração com origem no escravismo. Em outras palavras, no Brasil tem escola pra pobre e tem escola pra rico, pra que o filho do pobre vire empregado do filho do rico, e assim sucessivamente. E o governo está trabalhando pra “manter isso ae!”.
_ Ao falar sobre sua trajetória, você comenta sobre marcação e ausência, aproveitando a discussão sobre apagamentos e silenciamentos, você tem diversos trabalhos que abordam tais práticas. Começando com Notícias Populares e Minuto de Silêncio, você pode comentar sobre esses trabalhos?
“Notícias Populares” consiste em um conjunto de trabalhos que partem da utilização de jornal impresso como meio para produção. O jornal aqui é entendido como uma espécie de diário dos acontecimentos da sociedade, tendo essa dupla função: narrativa e documental. Uma vez que esse caráter narrativo e documental está sujeito a uma série de fatores, como questões econômicas e políticas, essas narrativas podem gerar panoramas informativos sujeitos a recortes curatoriais bastante parciais. O jornal tem um caráter simbólico. Tenta-se trabalhar com ele, tanto com sua materialidade quanto com esses panoramas narrativos formados a partir das suas notícias.
O “Notícias Populares” foi iniciado em 2013, época em que começava um período de constantes manifestações por todo o Brasil. Em Goiânia, local onde se deu o início do trabalho, não foi diferente. Na cidade, as primeiras manifestações ficaram conhecidas como Fora Marconi (governador do estado na época). Nesse período, havia uma sensação constante de um possível jogo de interesse nas narrativas dessas publicações. Essa sensação surgia por diferentes motivos. Um deles era a disparidade entre os números de manifestantes e as linguagens usadas para descrever a ação desses manifestantes. Desse conflito de narrativas, surgiu o trabalho, que partiu da retirada dos textos publicados, restando espaços vasados. A ponte de ligação entre o acontecimento, a notícia publicada e o público está na imagem não recortada. Essa imagem possibilita uma possível identificação ou reconstrução do texto recortado, contudo esse novo texto está sujeito a uma narrativa ou interpretação individual.
Existe uma opção de escolha de imagens diversas, passando por imagens amplamente conhecidas, sendo possível uma determinada unidade na reconstrução dessa narrativa pelo público. Em contraposição, há outro conjunto de imagens noticiadas que passam totalmente desapercebidas do imaginário popular, não sendo possível ativar uma possível memória dessa notícia. Nesse ponto, a partir de uma imagem vaga, presente em uma página de jornal com todos os textos recortados, instaura-se um jogo de relações que ultrapassa a relação entre notícia como representação de um acontecimento e reconstrução de um acontecimento a partir do ponto de vista pessoal.
“Minuto de Silêncio”, apesar do procedimento ser o mesmo usado em “Notícias Populares”, tem uma autonomia que se dá na relação entre título, acontecimento e objeto. A ausência do artigo “um”, geralmente usado para referir a esse tempo destinado a reverência e respeito, deixa esse tempo em suspenso, trazendo várias questões em aberto: Qual é a duração desse minuto? Qual silêncio é esse? É um silencio de reverência? Há uma tentativa de silenciamento do caso? Foi uma ação de silenciamento das várias camadas representadas pela Marielle? A quem interessa esse silêncio?
O “cálice”, essa palavra/bebida presa na garganta para negos e pobres, era uma realidade antes do golpe 1964 e continuou intocável depois da ditadura.
Gostaria de deixar um poema de Dheyne de Souza que dialoga com o trabalho:
milhares de minutos de silêncio
como se o instante em que marielle se foi pairasse neste minuto de silêncio
e com vários vazios preenchessem milhares de vozes
o que mais a história ?
tantas palavras e nenhuma
arranhando a garganta
ameaçando os dentes
neblinas à vista
as várias faces do silêncio
a face em branco,
a face dos
o tempo
as balas
mas esse engasgo
esse minuto de silêncio árduo
aguarda
que um grito preso gera milhões
_ Felizmente estamos vivendo um momento de reflexão acerca de certas figuras históricas e como tais imagens e narrativas nos foram apresentadas. Outro trabalho que me capturarou a atenção foi Refazendo Mitos, você pode falar sobre ele?
“Refazendo Mitos” é uma ação realizada em 4 de fevereiro de 2020 e consistiu em provocar uma chama temporária, com tecidos encharcados com material inflamável, no Monumento ao Anhanguera. A ação foi realizada após cinco tentativas, desde o fim de 2019. O gesto de colocar fogo vem da relação entre o mito construído a partir de narrativas oficiais. Nesse caso é a construção idealizada dos bandeirantes como desbravadores e construtores nacionais, em oposição ao mito como relação simbólica construída ancestralmente e transmitida por gerações como forma de ser e interpretar o meio. Essas duas formas de ser entender o mito parecem conflitantes. De um lado, tem-se uma construção a partir da imposição da narrativa. De outro, dá-se em uma relação construída morosamente. Essa afirmação de relatos históricos a partir do poder de quem pode escrever essa história cria esse senário cheio de figuras fantasmagóricas ocupando espaços públicos.
A ação acontece como um invocativo de uma das narrativas da origem do nome “Anhanguera”. A ação é construída a partir de uma narrativa popular, que oscila entre o mito e um fato histórico. Nessa narrativa, o bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva (Anhanguera), ao se deparar com indígenas Goyá ou Goyazes, notou pequenas peças feitas com ouro. Pediu que os nativos indicassem o local onde encontraram o ouro e também dessem passagem pelo seu território. Ao ter seu pedido negado, Bartolomeu ameaçou colocar fogo nos rios da região. Para provar sua capacidade, colocou um pouco de cachaça em uma vasilha, com a premissa de ser água, e ateou fogo. Ao notarem o feito, os nativos indicaram o local do ouro e se renderam. Por esse feito, Bartolomeu foi batizado pelos nativos como “Anhanguera” (do tupi "diabo velho" ou "espírito maligno"). O ato de colocar fogo na cachaça, inicialmente, foi realizado pelo bandeirante Bento Pires Ribeiro e, posteriormente, foi atribuído ao Anhanguera através de narrativas populares.
A partir dessa narrativa, veio o uso do fogo no trabalho. Essa tentativa de tornar presente essa relação de formas diferentes de se entender e lidar com o mundo. Esse fogo do Anhanguera é o fogo de Nero, o fogo da condenação cristã e o fogo do truque. Essa visão de mundo é introduzida ao interior do país com a entrada dos bandeirantes. É esse mesmo fogo que se faz presente no descaso com o patrimônio público, que consumiu o Museu Nacional, o Museu da Língua Portuguesa, o Memorial da América Latina, o MAM/RJ, entre vários outros. Em oposição ao fogo que é a divindade, é o calor do corpo, é o brilho do sol e o fogo como parte de um todo. Para deixar essa ideia mais presente, acabei de fazer um outro trabalho chamado “Invocar/Evocar”, que consiste em três proposições:
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Encha um copo com cachaça e outro com água, coloque fogo na cachaça, beba a água do outro copo lentamente enquanto observa o fogo. Tente terminar de beber no mesmo momento em que o fogo apagar.
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Faça uma fogueira em local aberto, sente-se próximo ao fogo e olhe fixamente por um minuto. Beba um gole de cachaça, olhe para o céu e procure uma estrela.
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Coloque uma dose de cachaça em um copo, coloque fogo na cachaça e beba em um gole. Beba enquanto ainda estiver pegando fogo.
Em “Refazendo Mitos”, há esse duelo de visões diferentes de mundo, e na realização da ação destaca-se a afronta ao monumento. O gesto em si é de posicionamento político, em colocar fogo em um monumento que se encontra ao lado de uma unidade móvel da polícia. Todo o conjunto que compõe a situação, somado à ação, provoca um panorama de questões complexas. A escultura de um bandeirante que procurava minas de ouro e escravizava indígenas com o aval do estado e da igreja, colocada no meio da avenida símbolo econômico e financeiro brasileiro (Av. Paulista), ao lado de uma unidade da Polícia. É uma situação muito simbólica e que revela muito do momento político que estamos passando.
_ Em Três Poderes e Escolhe a Bandeira e Renuncia, você apresenta trabalhos que partem de uma construção visual instigante, Três Poderes sendo também bastante afirmativo. Você pode falar sobre como foi desenvolver esses trabalhos e como você os enxerga dentro da formação do Brasil enquanto país?
“Escolhe a Bandeira e Renuncia” foi realizado a partir de um convite feito pela curadora do CCSP Maria Adelaide Pontes. O convite era para uma exposição “Porta de Banheiro”, que consistia em uma área expositiva e a replicação das imagens dos trabalhos nas portas dos banheiros do CCSP. Pensei em fazer um trabalho que dialogasse com a ideia do banheiro público como local de manifestação coletiva. As paredes dos banheiros são ocupadas por sobreposições de pensamentos, mensagens, palavras, desenhos, etc. O trabalho visualmente não tem nada a ver com uma estética de banheiro, mas partindo dessa ideia o trabalho seria construído a partir da junção de uma série de pensamentos que, de certa forma, não seriam meus.
“Escolhe a Bandeira e Renuncia” é uma junção de pensamentos e referências que podem ser pensadas juntas ou separadas. Em outras palavras, um ready-made de ideias e obras de arte. No fim de 2018, já havia saído o resultado das eleições presidenciais, e as preocupações que vinham a partir do resultado me levaram a pensar no “Sal sem carne” (1975), de Cildo Meireles, e suas implicações sobre a ideia de gueto. Essas ideias me ajudaram a escolher os trabalhos para compor essa imagem. O primeiro foi a bandeira “Seja marginal Seja herói” (1968), de Helio Oiticica. A composição formal dela seria mantida. Ela que determinou que o trabalho seria uma bandeira. Até aí, eu não sabia que tipo de imagem seria o trabalho. A segunda intervenção foi substituir a imagem do “Herói anônimo/Mineirinho” pelo mapa do “Plano Piloto de Brasília” projetado nos anos de 1950 por Lucio Costa. Seria interessante ler o texto (“O Herói Anti-Herói e O Anti-Herói Anônimo”) de Hélio Oiticica para criar relações entre as ideias da bandeira e o projeto desenvolvimentista e de criação da nova imagem nacional que acompanharam o projeto e construção de Brasília. A próxima intervenção se deu na substituição da frase, que começou a vir com a música “Geleia Geral”, de Torquato Neto, interpretada por Gilberto Gil no disco “Tropicália”. Ele canta: “Um poeta desfolha a bandeira e a manhã tropical se inicia”. A frase foi modificada por Tom Zé em “Tropicalea jacta Est”, do disco “Tropicália Lixo Lógico”, de 2012. Ele canta: “Torquato Neto do Piauí / Pinta no verso do céu daqui / Aquela manhã que se inicia / Desfolha a bandeira e renuncia”. Para colocar na bandeira, mudei para: “Na manhã que se inicia / Escolhe a bandeira e renuncia”. Entendo que o trabalho se faz a partir desse conjunto de pensamentos, e não apenas na junção das imagens dos trabalhos como referências.
“Três Poderes” parte de um “jogo de linguagem”, que se dá na junção de dois objetos em que ambos referem-se a concepções de realidades a partir de uma “tríade” (trindade/três poderes), construída a partir de uma base linguística. Por outro lado, tem a relação simbólica desses dois objetos e sua relação com o contexto. Historicamente, a junção desses dois poderes, Estado e religião, apontam para subserviência/genocídio/imperialismo. Essa junção parece se estruturar no devaneio político, linguístico, matemático ou na criação de uma realidade paralela, em que 3+3=3 ou 1+1=3. Tem aqui a base para distorção ou justificativa para qualquer tragédia.
_ Helô, você já participou de exposições individuais e coletivas, quais diferenças você sente quando expondo individualmente e coletivamente?
Individualmente, é a oportunidade de apresentar a construção de um pensamento presente em um conjunto de trabalhos. Pensamento esse que partiu de inquietações e do desdobramento da produção. É o momento de colocar esse pensamento à prova. Em exposições coletivas, geralmente o trabalho está apresentado dentro de um recorte curatorial, que pode agregar questões ao trabalho apresentado ou não. Exposições coletivas são interessantes no diálogo que acontece com os demais artistas e trabalhos. Dependendo da exposição, é possível notar a potência criativa de um período.
_ Alguma dessas exposições foi particularmente especial pra você? ~
Acho mais interessante pensar no todo, entendendo cada exposição como processo, como construção e apresentação dos trabalhos. Assim, o conjunto acaba falando muito sobre a produção.
Publicado em 11 de setembro de 2020.