Idade Da Meia-Luz
Em 22 de abril de 2020, a proposição da performance "Idade da meia-luz", de Helô Sanvoy, se espalhou pelas mídias sociais. Ao longo dos próximos dias, foram recebidos relatos, registros e impressões de quem participou.
A proposta parte de um gesto individual/coletivo, que consiste em apagar o máximo possível de luzes ao mesmo tempo. O processo de apagar as luzes torna perceptível que quase todas as atividades e intervenções de um sistema ou modo de vida sofreram uma pausa. Essa pausa é potencializada e visível pela ausência de luz elétrica, uma manifestação poética do isolamento coletivo. O projeto consiste em uma proposição que acontece quase como um exercício de imaginação, pois, pela sua dimensão, seu acontecimento é praticamente utópico. Com esse gesto, tenta-se modificar a paisagem urbana por algum momento, tornando a paisagem o mais próximo possível de um ambiente natural – o escuro sendo iluminado pelas luzes naturais da noite.
Sonia Costa
Eu acho que o que eu tenho assim pra falar, que ficou pra mim mais forte, é sobre a ação, sobre ter feito a ação, é, foi que, eu percebi que tem um discurso muito forte, né, a respeito da possibilidade que a pandemia tá trazendo... de interiorização, né, de mergulho na gente mesmo, da gente ter uma oportunidade de ficar com a gente mesmo. E quando eu fiz a ação, foi a primeira coisa que eu percebi, foi o quanto que isso não estava acontecendo comigo, né, muito pelo contrário, porque eu tenho trabalhado de forma remota, então fico muito tempo no computador, sempre muito tempo no computador falando com amigos, com familiares, né. E quando você me falou, logo de cara eu quis fazer, porque na minha infância, eu morei numa cidade muito pequenininha no interior da Bahia, e lá não tinha energia elétrica, era tudo com candeeiro, eu tenho muito forte esses tempos na minha memória, assim, é tempo que eu lembro de muita beleza, assim, pra mim, sabe. E dae, na sequência, quando chegou a energia elétrica, funcionava assim, mais ou menos das sete da noite às nove, depois eles cortavam a luz, né, encerrava o gerador. Então eu tenho muito forte essa memória, então quando você falou, na hora eu já tive vontade de fazer, né. E aí, eu apaguei. Na verdade eu apaguei, eu me lembro que eu apaguei a luz até um pouco antes do momento que você pediu, é, e fiquei bastante tempo com ela apagada, né. Inclusive, eu tomei banho com ela apagada. Deixei a casa toda apagada, e meu marido e minha
filha também tava em casa e super gostaram, eu falei pra eles e tal. E a gente teve essa possibilidade, é, ao mesmo tempo que havia essa possibilidade de perceber mais essa presença do fora, né, através da janela, essa luminosidade, essa cidade, né. No mesmo tempo que abriu essa possibilidade, mas foi através, quando eu estava contemplando essa janela, né, essa escuridão, que eu percebi o quanto que eu estava me sentindo ali, pela primeira vez na pandemia de fato recolhida, de fato, com a possibilidade de ficar em mim, comigo mesma. Inclusive, vale te dizer que depois desse dia, muitas vezes eu tenho feito isso à noite. Eu apago a luz e minha família super tem curtido. Assim, eu tomo banho com a luz apagada, porque eu percebi o quanto que esse estado favoreceu essa interiorização, levou pra um lugar de uma alteração na minha sensibilidade, na minha percepção a respeito de mim mesma, numa conexão com um estado um pouco mais sensível, né, de uma percepção mais sensível. Então foi muito bom pra mim, foi muito poético e ao mesmo tempo me trouxe um lugar de um aconchego de um acolhimento muito grande por mexer nessa memória, é uma boa memória também da minha infância. A ação me permitiu perceber esse fora, esse dentro, e o que é de fato a possibilidade de estar dentro, porque estar dentro de casa simplesmente não quer dizer que estou indo para dentro de mim, né.
Vinícios Reis Galvão
Eu apaguei as luzes e me deitei na cama, e fiquei escutando o som das coisas na rua, tentando não pensar em muita coisa, vendo até onde eu, assim, aguentava ficar com as luzes apagadas sem me incomodar. Acho que eu me levantei, tomei uma água ou fui pegar alguma coisa na cozinha e voltei a deitar, até que uma hora eu adormeci.
Helio Menezes
No horário marcado - em realidade, uns minutos antes - desliguei as luzes de casa, estendi uma canga na varanda e, atendendo ao convite, sentei-me no escuro. iluminado apenas pelas luzes de fora que restavam acesas e que, pela janela, chegavam e me comunicavam. mas ali, naqueles momentos de breu, eram sobretudo as sacadas escuras, as janelas sem claridade, as luzes apagadas que me convidavam à conversa silenciosa. estariam elas - sacadas, janelas e luzes - praticando o mesmo jogo que eu praticava? tomavam elas também parte da coreografia coletiva proposta pelo Sanvoy? será que o fazem de modo deliberado? se não, isso faz qualquer diferença? esse bailado que propõe quietar uma megalópole industrial, convidando-a a colher matéria da escuridão e dela se fartar - essa dança de muitos, e ao mesmo tempo sem par, aonde nos levaria? quanto a mim, fui levado a uma emaranhado de questionamentos que dispersavam sobre condições de diálogos não-verbais, de interações não-mediados por telas e infernais aparatos (sobretudo, embora não só, em tempos sanitariamente críticos de isolamento), de contatos ativados pelo gesto comum-e-desacompanhado, solitário-e-coletivo, de desligar as luzes ao mesmo tempo, por um tempo, e lá ficar(mos). Vi-me, assim, numa espécie de voyerismo às avessas, perscrutando as lâmpadas enfim descansadas das fenestras que meus olhos alcançavam enxergar, dentro do pedaço de horizonte que a varanda de casa me concede.
Ali, sentado no escuro, confabulava com Mbembe como sair da grande noite. e ri, ao final, pensando: mas que palpite infeliz de quem busca cantar apesar de fazer escuro… se é nele, com ele, dentro dele - do escuro, do negrume - que brota todo canto, todo som? sem espaço para mas ou demais partículas adversativas. verso por verso, relembro e me agarro ao Rosa em suas Veredas: "não convém fazer escândalo de começo; só aos poucos é que o escuro é claro...”
Andrea Rehder
Como eu tenho uma família grande, três filhos estavam em casa e o marido, para mim foi uma ação que eu tive que preparar com uma certa antecedência. Então, à tarde, comecei a avisar todo mundo aqui na minha casa, havia muito home office. O horário era bom, interessante. Quando começou a chegar dez para as nove, eu comecei a avisar a turma, ia para um quarto, ia para outra sala, ia para os cantos dos meninos, do meu marido, explicando que, nove e zero em ponto, tinha que ser uma atitude juntos. Eu já tinha apagado praticamente todas as outras luzes e deixei para o último instante... que os meninos mesmo participassem também. Eles não entenderam, reclamaram um pouco. Eu disse que era uma ação sua, do Helô Sanvoy, e eles conhecem você, conhecem o seu trabalho e acabaram rapidamente apagando as luzes. Deu nove e zero, eu estava em uma escuridão. Minha casa tem muita janela. E o que me fez sentir naquele momento é que, na hora que virou uma escuridão, as coisas começaram obviamente a clarearem, a vista da gente se acostuma, o silêncio acostuma. Eu consegui segurar essa ação por uns sete minutos no máximo, entre cinco e sete. Mas eu mesma fiquei sentada em uma ala da casa onde eu fiquei por muito tempo, por mais de meia hora. Eu não consegui segurar essa ação no quarto da turma mais distante de onde eu estava. E era impressionante, porque você nota a luz que vem de fora. A cidade conversa com você, dentro de um silêncio que reflete a cidade, o movimento, as pessoas, o que elas estão fazendo, em que momento elas devem estar. É quase que um coração batendo, do lado de fora. E é como se você tivesse em uma certa quietude, e eles, em uma inquietude. Foi muito interessante para mim. Eu sentei exatamente nessa quina dessa imagem que você está vendo aí, que tem uma quina de sofá preto. E ali eu fiquei deitada, meio sentada, meio deitada. Eu tinha uma visão ampla de tudo, eu estava em um lugar que beneficiou muito essa ação.
Dheyne de Souza
enquanto as luzes em sombra
na cidade quieta e movediça
as estrelas dizem por este instante
meias-verdades piscam
Júlia Rocha
Eu não apaguei a luz, mas apaguei a cabeça e fiquei pensando nas luzes apagadas e as pessoas se movendo no escuro e foi bonito.
Walter Solon
Logo depois de mandar a foto, tava almoçando no escuro, jantando no escuro, daí meu irmão entrou na sala e perguntou o que que eu tava fazendo, eu expliquei a performance, e o conceito da performance e falei: acender a luz... deixar a luz apagada até sentir vontade de reacendê-la. Daí meu irmão interpretou isso como autorização pra ele imediatamente reacender a luz, e ele acendeu a luz da sala, então durou muito pouco tempo.
Adriano Braga
A questão é que eu não me lembro ao certo o que fizemos aquele dia aqui em casa. Lembro que apaguei e ainda assim dava pra ver muita coisa. Lembro que pra mim teve muito impacto sua proposição, que me tocou. Se eu não me engano, já estávamos preparando algo pra comer e assistimos algo antes de dormir.
Aqui em casa tudo é mais penumbroso mesmo. Já até acostumei com isso. Meu namorado já se incomoda e gosta mais de entrada de luz natural. Conversamos sobre isso também quando fomos construir nossa casa.
Com a proposição eu também fui levado pra esse lugar, fiquei pensando que seria uma conexão fantástica se todos fossem levados a apagar a luz esse horário. Meio como que conectando pela luz só que pela escuridão. Um voltar pra dentro.
Fiquei pensando em outros horários. Tipo meia noite. Ainda que muitas pessoas não tivessem conscientes de ter se apagado para a ação, seriam partícipes. E estaríamos mais ainda conectados...
Viajei horrores.
Pra mim o que tava em jogo era um sentimento de comungar.
É isso, foi singelo e bonito demais!