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Entrevista Paço das Artes/ Helô Sanvoy

Projeto 2022

Entrevista conduzida por Marco Antônio Vieira

 

_Caso você tivesse de definir as grandes linhas-mestras/diretrizes de sua poética, que palavras/temas/questões parecem governar seu pensamento e dominar sua produção artística? Que obras representaram, para sua poética, os grandes divisores de água, a partir das quais você entende um passo/amadurecimento marcante em sua trajetória? Por quê? 

Atualmente venho pensando que uma das grandes potências de ser artista é lidar com a liberdade, o que não é algo simples de se construir e de manter. É comum estar constantemente lidando com limitações que são colocadas, por situações diversas, ou as que criamos constantemente. Diante dessa questão, tenho exercido o pensamento de lidar com a demanda de cada trabalho e penso que, em cada projeto, posso recomeçar tudo novamente. Nesse recomeço, as bordas que dão limite à pesquisa são expandidas. Dentro dos limites dessas bordas, estão os trabalhos que já foram feitos. Penso que, por mais significativo, ou não, que essa produção possa ser, acredito que tanto quanto assunto, processo, suporte ou linguagem, a diretriz é estar desgovernado. Não de forma leviana, mas estar disposto a observar “o mistério das coisas” diante de cada pedra encontrada no caminho.

Tenho ficado mais animado pelos projetos que ainda não fiz, mais do que pelos que já estão feitos. Penso nos trabalhos já realizados como verbos que estão por aí, sendo independentes do que me motivou a fazê-los, e sujeitos à conjugação do público. O passo marcante está por ser dado, mesmo tendo a possibilidade de ser em falso. Não estou falando de forma romântica, o que desejo é ver a linguagem se desdobrando.

 

_Quais são as suas grandes influências artísticas? O que essas obras ou artistas deixaram como marcas em sua poética?

 

Isso depende da época e do trabalho que estou fazendo. E nem sempre as referências são da arte. Às vezes é necessário confrontar aquilo que a gente gosta, para não cair na repetição. Como não tenho um modo específico para trabalhar, a forma sofre mudanças. Tenho ouvido muito Christian Scott, John Coltrane e gosto muito da forma que o Tom Zé trabalha. Com Racionais MC’s, por exemplo, em “Tô Ouvindo Alguém me Chamar”, a base da música é a imagem do desespero. Tunga, Cildo Meireles, Lygia Clark, Arthur Bispo do Rosário, Doris Salcedo, Marcel Duchamp, Piero Manzoni, Joseph Beuys. Gosto de ouvir conversas e histórias do interior e da forma como elaboram a narrativa e elaboram as palavras. Sobre a marca que artistas que gosto deixam, eu não sei. Entendo que o trabalho é resultante do conjunto de coisas da vida. Alguns trabalhos já vieram com a ideia pronta, outros vieram enquanto via um filme ou série, ou escutando notícias, conversando com alguém. No geral, tudo serve como referência.

_Um aspecto que se destaca em sua produção é a maneira como você pensa os materiais que emprega para a confecção das obras. Você poderia descrever um pouco desse processo e de como essa abordagem, que me parece caracterizar a singularidade de seu pensamento artístico, surgiu e foi se modulando e materializando ao longo do tempo? 

Um material nunca é só um material, mesmo que seja. Se ele não se desdobra pelo olhar/fazer do artista, ele se desdobra defronte ao público. Depende da sensibilidade ou bagagem de cada um. Como prática, qualquer “coisa” pode ser trabalhada como material, sendo física ou não. Um tijolo, um vídeo, um jornal, um conceito, uma tese, uma crença, a capacidade de lidar com a descoberta diante desses materiais é uma fonte latente para que o trabalho aconteça. Penso nos materiais como possibilidade. Quanta latência pode estar encoberta em uma pedra? Pedra que já era, mesmo antes da palavra “pedra”? Ou quantas possibilidades, histórias, desejos, sentimentos podem ser atribuídos a um tijolo, que já é um produto manipulado. Quando faço um trabalho, estou pensando nessas possibilidades, do material ser um elemento simbólico, sem deixar de ser substantivo, aquilo que evidencia a substância. Depois de pensar nessas coisas e de juntar os materiais, o bom é ser surpreendido peja junção, e muito do que foi pensando no processo se perde e outras coisas aparecem.

 

_Em relação aos temas ativistas que rondam sua poética, de que modo ou modos você  acredita que os procura  material e poeticamente? Como você busca contribuir para as questões que reclamam a atenção da sociedade e, por conseguinte, do Sistema das Artes atualmente? Em seu entender, há um perigo em confundirem-se o panfletário e o poético/artístico? 

Sendo quem sou, uma pessoa negra, no Brasil, no século XXI, não é possível viver sem se posicionar. Isso faz parte da trajetória de vida, só é possível falar do que se vivencia, senão vira ilustração, descrição ou qualquer outra coisa. Não é um privilégio ou uma falta de sorte minha. Esse é um dos vários pontos em que a arte se confunde com a vida. É um elemento constitutivo dela. E assim alguns posicionamentos aparecem no meu trabalho. O modo com que trabalho com essas questões deriva da demanda do trabalho, não tem forma pré-estabelecida. Enquanto fazer artístico, não dá pra pensar quais as contribuições decorrem de um trabalho, me coloco publicamente no mundo como artista, e o trabalho se desdobra no mundo, mesmo quando levanta questões específicas. Particularmente, mesmo em trabalhos com questões políticas, procuro encontrar pontos em que o trabalho não seja mais ou menos político ou poético, que ele tenha a capacidade de surpreender enquanto obra.

Sobre o sistema, um “sistema” é sempre um sistema, seja das artes, econômico ou qualquer outro. O conjunto de instituições que formam um sistema, seja em qual época for, estabelecem limites e modos de ser, intencionalmente ou não. As bordas são mais interessantes, mesmo que mais rígidas e ásperas. Não vejo problemas em ser panfletário, ou mais incisivo, para quem escolhe ser, é questão de escolha, “viva e deixe viver”.      

 

_Sua produção aparenta apropriar-se de maneira muito engenhosa e sofisticada do vocabulário herdado da arte ocidental. Há uma série de « espectros » que aparentam « assombrar » sua obra: distintas linhagens da tradição abstrata, uma espécie de subversão do legado do « minimalismo », no sentido que algumas obras (Séries Lucidez Difusa e Parabrigar) lidam com materiais empregados pela construção civil e arquitetura, assim como demonstram controle e manejo formais precisos e mesmo virtuosísticos, ao mesmo tempo que carregam nítidos índices de uma violência oriunda da assimetria gerada pelo neoliberalismo e pelas sobrevivências colonialistas que marcam a história de nossa cultura. Você compreenderia essas combinações inusitadas em sua obra como constituindo sua assinatura poética  ou determinando seu pensamento estético? 

Entendo que o trabalho de arte é resultado de toda uma trajetória de vida, somada a uma trajetória de reflexões de uma pesquisa. Não desassocio minhas experiências de infância – que não tiveram contato com uma produção institucionalizada de arte – da minha produção. Até os quinze anos, morava em um local com várias casas no mesmo quintal, e, durante a infância, as várias crianças que moravam ali, brincavam juntando coisas também, toco de madeira, tijolo, construíamos coisas no quintal, que iam de brinquedos a estruturas. O próprio processo fazia parte da brincadeira. Essas memórias fazem parte do meu processo e em alguns momentos aparecem no trabalho, às vezes conscientemente, outras vezes, não. Mesmo trazendo essas memórias, entendo que o trabalho precisa se sustentar diante da história da arte, seja afirmando ou confrontando essa história, e,  em ambos os casos,  o trabalho acaba sendo somado a ela, aparecendo nas narrativas oficiais ou caindo no esquecimento. Falando sobre o construtivismo, quando Tatlin dá início à construção dos seus primeiros objetos, ele já tinha visto os relevos de madeira de Picasso, que, por sua vez, já trazia em seus trabalhos referências da arte africana. Essa última, tratada como secundária nas narrativas da arte ocidental. O que eu penso é que não é possível “desver” o que já foi visto. E é possível fazer a realidade de todas essas narrativas somadas a outras. Em Parabrigar, por exemplo, o objeto se faz em relação ao título. A palavra, mesmo sendo abstrata, é um material constitutivo, poderia ser colocada na ficha técnica junto com a descrição dos materiais: cacos de vidro temperado, tijolo de demolição e palavra. Não esquecendo aqui que o objeto também invoca uma ação.

 

_Como você lida com as tensões entre o narrativo e o poético em seu trabalho? Essa pergunta se origina do fato de que ao depararmos sobretudo com as obras das séries mais recentes Lucidez Difusa e Parabrigar, somos simultaneamente capturados pelo virtuosismo das composições e pela violência que parece estar ali alegorizada, o que nos levaria a imaginar como tijolos, cacos de vidro e couro podem apontar para uma cena narrativa, normalmente associada ao vocabulário figurativo. Considero essa uma questão da maior complexidade em sua linguagem poética.

Cada material traz suas questões. É possível montar narrativas a partir deles, da sua origem, ou do seu uso. Ou apenas lidar com a forma como o material se apresenta. Particularmente, gosto da ideia do “sendo” do “estar sendo”, mais do que pelo “é”, da possibilidade de se apresentar de formas diversas do trabalho, mesmo que a aparência imediata aponte para outro lugar. Entendo que alguns limites de linguagem na arte são sustentados apenas pela tradição. Vem daí o fato de trabalhar com materiais, suportes e questões diversas, a possibilidade de uma coisa ser em relação ou misturada com outras. Se é escultura ou objeto, se é figurativo ou abstrato, esses limites parecem que já foram desfeitos ou são bastante frágeis. Um objeto de arte pode “narrar” algumas coisas ou pode ser um objeto de possibilidades imanentes e infindáveis, ambas ao mesmo tempo. Essa mutabilidade ou relatividade do trabalho me parece uma questão interessante. Até o espaço e o tempo são relativos. Em algum ponto se encontra a singularidade.

  

_Que lugar a « negritude », o afro-diaspórico e suas narrativas, ficções e demandas ocupam para seu pensamento e posição como sujeito que produz arte na atualidade? Há algo nesse horizonte que você julga necessário problematizar? Você acredita que há uma « arte negra contemporânea brasileira »? Em caso afirmativo, ela poderia ou deveria construir-se à maneira de um « movimento »? Isso é desejável? Como você enxerga a produção de artistas que se identificam a partir desse lugar discursivo e poético? 

Não é uma questão de ocupar, aparece em momentos diversos e de forma constante. Como sujeito, quero poder ser tão banal e cotidiano quanto qualquer outro, e acredito que esse seja o desejo de muitos. As demandas sobre sujeitos negros são sociais, e se impõem no decorrer da vida, o que “nos” leva a tomar atitudes de resistência e afrontamento. Entendo que os termos “arte negra” ou “arte afro-brasileira” denotam um posicionamento político diante do apagamento de sujeitos negros – e não apenas – dentro do sistema das artes. Em outros momentos, é um rótulo colocado sobre a produção de arte feita por indivíduos racializados. Gosto muito da questão que o Igor Simões tem levantado em várias de suas falas: “Se a arte afro-brasileira é a feita por sujeitos negros, qual é o nome da outra?”.

_Como você lida com o posicionamento crítico diante de sua produção: refiro-me não apenas à interpretação de sua obra mas à própria relação com a figura do crítico/curador? Em seu entender, trata-se de uma relação em que mesmo as possíveis tensões possam ser produtivas como estímulo para seu pensamento artístico?

Penso nos críticos/curadores como pessoas, e minha relação com elas depende da afinidade construída. Com alguns, acabo criando uma relação mais próxima, com outros as relações ficam sendo mais profissionais. Quando recebo um texto sobre minha produção, geralmente o leio tentando encontrar ali aspectos dos trabalhos que possam ter passado despercebidos por mim. Às vezes concordo, às vezes não, mas penso que não detenho a verdade sobre o trabalho, e não leio a crítica pensando se está de acordo com minha visão. Não me lembro se tive algum conflito com crítico/curador em minha produção individual, mas como são pessoas que fazem parte do meio da arte, acabo tendo uma resistência maior para levar como influência para o meu trabalho. Nesse aspecto, fico mais receptivo quando leio textos sobre a produção de outros artistas. 

 

 

Caderno de entrevistas "Temporada de Projetos 2022 - Paço das Artes". Paço das Artes. 2022. São Paulo-SP.

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