Nessas artes, vadiava
Ana Avelar
Texto para a exposição "Nessas artes, vadiava".
Curadoria Ana Avelar
Aura Galeria de Arte. 2024. São Paulo-SP.
O antropólogo sul-africano Archie Mafeje (1936 – 2007) denunciou aquilo que encobria a noção de alteridade: a divisão entre um Eu e um Outro colocava o segundo passivamente como objeto de investigação do primeiro[1]. Essa relação de domínio epistemológico era mais do que apenas meio de subjugo do território: impedia qualquer leitura da diferença a partir de critérios propostos pelos próprios indivíduos. “Esse método produziu alguns pontos cegos ou predisposições ideológicas que dificultaram, para aqueles associados com o sistema, enxergar essas sociedades sob qualquer outra ótica”, escreveu Mafeje. Em outras palavras, controlava-se a interpretação de outras realidades ao submetê-la a uma linguagem, um recorte de mundo pré-existente, circunscrito a taxonomias estabelecidas.
A separação entre esses dois mundos – vistos como opostos, ao mesmo tempo que descritos por conceitos científicos semelhantes – estabelece diferenças intransponíveis entre eles. Alicerça as xenofobias e racismos relacionados ao trânsito de pessoas pelo globo, a homofobia e a misoginia dirigidas àqueles e àquelas que desviam dos padrões impostos. O Outro, o estranho, o alienígena, é um ser indesejável, assustador porque misterioso – capaz de atos indizíveis na mente de quem fantasia o ódio e o medo. Sequestrado das suas singularidades, é um depósito das sombras do Eu dominador.
Esta exposição individual de Helô Sanvoy endereça as violências calcadas nessa visão dualista que rege as relações sociais, políticas e, portanto, simbólicas da existência brasileira. O título “Nessas artes, vadiava” faz referência à lei da vadiagem estabelecida no século XIX brasileiro, forma de controle urbano das populações egressas da escravização[2]. O Eu estrategicamente impede o Outro de circular em busca de atividades para a subsistência e, simultaneamente, o acusa de vadiar, impondo-lhe graves e veementes punições.
Nas series recentes apresentadas, articulam-se materiais selecionados por seu sentido simbólico de longa duração para quem participa das dinâmicas sociais deste país. Enquanto o vidro apresenta sua transparência, ao ser fragmentado, traz uma contraditória opacidade; o couro aponta para a história dessa atividade como modo de ocupação do território físico e político no passado e no presente da economia-política brasileira. A corda de cânhamo, planta cujo cultivo colonial baseou-se na escravização, aponta para a repressão aos grupos sociais envolvidos no tráfico de maconha – o comércio e uso do “pito de pango” foram proibidos no século XIX, acreditando-se ter sido a primeira lei no mundo a condenar o uso da planta.
Ainda no reino vegetal, a madeira em sua versão pau-brasil faz-se bloco, lasca e informação – resta quase nada dela para além de sua memória. Já a sansevieria trifasciata, originária do continente africano e chamada por nós sincreticamente de Espada de Ogum e de São Jorge, utilizada pela sua representação como amuleto de proteção por lá e cá.
Finalmente, o corpo do artista – presente em imagem ou vestígio – e a palavra – sem exageros verbais, contendo apenas as letras necessárias para indicar o que se pretende.
Na serie “Lucidez difusa” (2020-2022), caracterizada pela presença de vidro, cimento e couro ou couro trançado, por vezes somado o chumbo, a rigidez geométrica de alguns elementos é contraposta à organicidade fluida de outros. A trança penetra o bloco, dele entra e sai; está entranhada na construção densa e estruturada. Não há como separá-los porque são componentes de um mesmo todo cultural. “Âmago encarnado” (2022) – termo relativo ao interior do pau-brasil utilizado na extração do pigmento – confirma as contradições que nos erigem: da grade estrutural de ferro pendem riquezas usurpadas ao trabalho submetido e explorado.
É esse o sujeito que está inscrito pelo sufixo “Eiro” da outra série (2023). Designando também uma nacionalidade, arraiga-se na definição da identidade por contraste – aquele que é eiro, aquele que não o é. A lona de algodão cru é inscrita pelo carvão, sutis respingos de pó e lascas de pau-brasil e cera de abelha originam um objeto têxtil que evoca inscrições seculares. Então, as forcas trazem nos pingentes os números da brutalidade contra grupos sociais específicos que sustentam a lógica do Eu e o Outro, observada por Mafeje – “Não desce pela garganta” (2021-2022).
Fazer arte nesse lugar de perseguição, julgamento e repreensão é insistir na força de transformação do ato artístico. A instalação inédita “Tersendo” (2024), de plantas, terra e tranças suspensas parece indicar alguma saída, mesmo que mágica, para irromper-se contra a violência – da bala à forca. Talvez somente o ritual possa purgar e sanar no “Sal de Cura” (2017) ou no afeto de trançar os cabelos do filho enquanto a narrativa do trabalho rural é contada em “Estão sendo tecidos” (2018).
Toda obra aqui é produzida lentamente pelo corpo que a enuncia – o mesmo que busca sustentar-se pela resistência das tranças. Ao contrário do que a história brasileira engendrou, não há cisão entre fazer artístico e conceituar arte, pois são domínio do mesmo indivíduo. Não há separação entre ideia e gesto, geometria e carne porque são elementos fundamentais da história cultural na qual Sanvoy vagamundeia.
“As coisas são aquilo de que são chamadas, ou possuem uma existência independente da nomenclatura que se fixa a elas?”, perguntava Mafeje. Sanvoy repete a pergunta do ponto de vista da arte mantendo-a incômoda e ostensiva, sem obrigação de solucioná-la, envolta na sedução do fetiche. Não a ciência, mas a arte -- pintura, desenho, escultura, objeto – , como prática de descanso e ócio, é a arma da recusa em submeter-se.
[1] MAFEJE, Archie. “A IDEOLOGIA DO TRIBALISMO (the ideology of tribalism, de archie mafeje)”. Tradução Anderson Bastos Martins. Pontos de Interrogação, v. 10, n. 3, Edição Especial, jul.-dez., p. 253-265, 2020.
[2] OLIVEIRA, Rosane; PAULINO, Silvia Campos. “Vadiagem e as novas formas de controle da população negra urbana pós-abolição”. Direito em Movimento, Rio de Janeiro, v. 18 - n. 1, p. 94-110, 1o sem. 2020.