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 Parabrigar ou a afirmação do mundo como

fabulação retórica em Helô Sanvoy

 

Marco Antônio Vieira

Texto para a Temporada de Projetos do Paço das Artes 2022

 

 

Em Helô Sanvoy, a obra consuma-se como proposição retórica, o que equivale a afirmar que a significação se produz como efeito de sua tropologia (WHITE, 2014) ou seja, do emprego de suas potências figurativas (DIDI-HUBERMAN,2015, p.43), aqui concernentes ao uso das figuras de linguagem e de como a significação se dá a partir de seus efeitos sobre o sujeito da interpretação.  Em outras palavras, a fabulação poética em Sanvoy não se confirmaria como duplicação ingenuamente evidente do mundo, mas antes como fabricação retórica, a partir do entendimento do lugar e da função operatórios que os mecanismos tropológicos – figurativos- e, em particular, alegóricos ocupam e desempenham na produção de sentidos de sua obra e de como é esse desenho retórico que convoca o ato interpretativo, à maneira de uma interpelação que se ancora em sua materialidade retórica.

Parabrigar (2020), palavra-valise a materializar um procedimento recorrente em Sanvoy, encarna a função operatória, que se desprende da ambiguidade constitutiva do neologismo linguístico eleito para nomear a obra, ou conjunto de obras, como é o caso aqui, de manter a significação engendrada a partir dos mecanismos retóricos atuantes em seus limites, explicitamente vacilante: o(s) signo(s) que estrutura(m) sua arquitetura semântico-poética operam a partir de uma cisão que se desnuda no ato de sua leitura/interpretação.

É a gangorra oscilatória entre o “abrigo”, como condição necessária à dignidade e a constatação de que seu acesso é interditado a um número crescente de indivíduos vulneráveis, que precisam “brigar” pelo direito à moradia, que concede à série que integra esse projeto, sua significação.

 Parabrigar, contudo, não se consuma unicamente como engenhosidade verbal e retira dos objetos e materiais utilizados por Sanvoy sua força alegórica. À maneira de um alegorista, o artista emprega tijolos, material usado para construir abrigo mas que igualmente pode converter-se em ferramenta de luta e de resistência. O tijolo pode ser arremessado contra paredes, que dele paradoxalmente se constituem. E é justamente aqui que se encontra a razão de ser do pensamento poético de Helô Sanvoy: estamos diante de um mundo que se fabrica como efeito de como a significação se funde com a fisicalidade em que se encerra a obra.

A escolha dos materiais e objetos com que compõe, não apenas esta série mas a totalidade de sua produção artística,  recorre a uma lógica indiciária, a saber, o material convertido em signo na obra carrega em si a capacidade de aludir àquilo que o ocasionou, a exemplo daquilo que se dá com o fotográfico, em que o registro luminoso resultante carrega em si a comprovação física de sua existência material.

A semântica que define a função prosaica, original e naturalizada da materialidade e dos objetos eleitos para a feitura das obras se preserva de forma condensada, como que a remeter às suas ficções narrativas. Ao mesmo tempo, a complexa relação que as obras de Sanvoy mantêm com a narratividade que as aparenta inspirar é,  dado o arranjo matérico-poético proposto pelo artista, nada senão um conjunto de suposições que emergem no processo de fabulação interpretativa que a natureza sígnica de suas obras exige daquele que com elas depara.

A indeterminação fértil (MONDZAIN, 2015), naquilo que concerne aos sentidos narrativos de suas obras, desafia a sentença categórica que as sepultaria como entidades de significação, em perpétuo processo da elaboração interpretativa, que convoca aquele que diante delas se encontra, a “produzir” interpretação. Suas textualidades se manifestam como um espaço multidimensional, em que sentidos se mesclam e colidem.  A abordagem da retoricidade em suas obras convoca o sujeito da leitura a interpretá-la segundo suas disposições matérico-figurais.

É dessa concepção, caracterizada pelo rigor no manejo da alegorização, que os sentidos políticos ou ativistas, comumente associados à obra de Sanvoy, dependem para atingir seus efeitos de significação e de que se alimentam e se estruturam sua abordagem poética, quando se a pensa em sua mais determinante e intransferível singularidade.

É de sua inclinação para a formulação alegórica, em que a materialidade da obra transcende a mera engenhosidade persuasiva (uma visão equivocada e rasteira do que é a retórica), e confirma-se em sua complexidade como uma modalidade particular de concepção plástica, afirmando sua dimensão figural, que a obra de Sanvoy revela aquilo que é capaz de instaurar no mundo e, que de outro modo, não nos seria dado ver e conhecer.

Como nos instrui Fontanier: “A alegoria [...] apresenta um pensamento sob a imagem de outro pensamento, mais apropriado para torná-la mais sensível ou mais surpreendente do que se fosse apresentada diretamente e sem nenhuma espécie de véu” (FONTANIER, 2009, p. 114. Tradução nossa). A alegoria, ademais, confirma-se como explícito artifício, em que o alegorista atribui sentido à obra, a partir de seu arranjo e “montagem” retóricos.

Em Sanvoy, o “véu” de que nos fala Fontanier revela-se em sua explicitude ou antes concretude tangível, pois que o que se apresenta e se oferece à leitura e à interpretação-  o artefato, objeto ou obra- assume-se em sua consistência retórica, desnuda-se como artifício, sem o qual a codificação que nele se encripta não se manifestaria. Sua materialização é sua condição como código a decifrar-se e, portanto, sua configuração material é o que a torna obra, como elemento de um arranjo triádico indissolúvel, em que o sujeito que produz a obra e aquele que a interpreta enlaçam-se em um complexo circuito que atualiza e justifica a obra como entidade de produção de sentido.

Compreender a centralidade que os recursos retóricos representam para Sanvoy resulta da detecção de princípios que atravessam sua produção nos mais distintos suportes e linguagens. As evidências desse domínio e dessa conhecença tropológicos, e de como a morfologia se afeta por essa consciência, se manifestam ao longo da produção do artista e podem reconhecer-se em seu manuseio da matéria em sua condição de material investido do alegórico.

Não seria, tampouco, descabido afirmar a recorrência de uma sintomatologia em que o linguístico e o visual se retroalimentam a governar o tratamento dos elementos visuais, dos signos e da objetualidade visíveis em Helô Sanvoy.  

O amparo material, em Sanvoy, tende a recorrer à lógica indiciária, capaz de viabilizar o acesso à significação poética da obra, cuja dependência do entorno diegético – narrativo- que semantiza o material retirado de seu contexto naturalizado, e o atualiza em sua função figural, é explícita. É o que se dá, por exemplo, em Minuto de Silêncio, obra de 2018, em que as fotos da deputada ativista Marielle Franco, assassinada em 2018, estampam as páginas de um jornal, do qual se recortaram todas as sentenças verbais, deixando em seu lugar, a estrutura tipográfica e diagramada vazada ao longo da composição da página, afirmando sua materialidade como suporte visual que, concomitantemente, serve tanto à alegoria do silêncio a ser observado pelo luto da morte da política, como àquela do  silêncio imposto pelo mistério envolvendo os mandantes do crime. A notícia de sua morte é assim atravessada pelo silêncio e a obra de Sanvoy a alegoriza exemplarmente.

Parabrigar, a exemplo de muitas das obras de Sanvoy, equilibra a condensação típica do poético, em que a linguagem se encontra em densa concentração, com a narratividade comumente associada ao relato histórico ou à prosa, em que, a despeito da dependência inequívoca de uma estrutura retórica que viabiliza o desdobramento narrativo de uma maneira determinada e determinante para seu “acontecimento” como entidade de significação, exige-se a presença de encadeamento narrativo sequencial e explícito. A estrutura retórica que materializa a obra em Sanvoy acaba por conduzir a leitura ao campo semântico do qual se retiram esses objetos/signos, em que seus sentidos se desprendem do enraizamento dos materiais empregados pelo artista, sugerindo a narratividade que encerra a dimensão ativista associada à sua poética.   

O que se nomeia em Narratologia como “fábula”, o “conjunto de acontecimentos comunicados pelo texto narrativo” (REIS, 2015, p. 151), aqui se desenrola como inferência ou dedução, calcada na lógica indiciária que caracteriza o entorno semântico que dá origem aos materiais que integram as obras, a partir da sutura alegórica, que distingue o agenciamento tropológico de Sanvoy. A interpretação aqui é uma exigência imposta pelas formulações retóricas que estruturam as obras. 

É a partir da radicalidade dessa constatação que o texto de Resistance to Theory irá advertir-nos contra o que ali se entende por uma “concepção mimética acrítica da arte”, em que impera a ingenuidade de divisões rasteiras entre “fato” e “ficção” (DE MAN, 2002, p.11), compreensão que se mostrará particularmente operatória para o fio argumentativo que se persegue aqui, quando se analisam as estratégias retóricas em Sanvoy, as quais apontam para uma complexidade estrutural que invalida a insistência em divisões demasiado separatistas da Teoria e da História da Arte, que tendem a isolar a narratividade como elemento preponderantemente associado ao figurativismo. Os sentidos se tramam fantasmáticos, pois que dependentes do “rastro” de significação que o laço sistêmico entre a reunião dos materiais e a significação a ele atrelados deixa no processo de produção de sentidos, em que a “ficção referencial” se produz nos limites mesmos do sistema sígnico que engendra a obra.

A possibilidade de imaginar acontecimentos, eventos ou contextos narrativos/históricos que inspiraram as obras que integram a série Parabrigar poderia aparentar inadequação, dado que não se trata de obras tidas como “figurativas”, o que, em tese, impediria o recurso à narratividade tradicionalmente amparada pela arquitetura figurativa. É precisamente nesse apenas aparente contrassenso que a singularidade poética de Sanvoy se desenha mais contundente. Ainda que esse “acesso” narrativo se materialize e se desdobre a partir de uma outra lógica de significação, supor sua inexistência, em obras como as de Sanvoy, equivaleria a negligenciar o funcionamento de sua abordagem poética.  

É assim que, em Parabrigar os significantes “abrigar” e “brigar” estruturam a significação da série.  Os tijolos, em que se incrustam, a um só tempo brutais e preciosos, a madeira e os cacos de vidro temperados, podem ser imaginados narrativamente como arsenal bélico a atirar-se para ferir e danificar aquilo que em tese é a moradia que protege  e alberga mas que é comumente negada a uma parcela considerável da população vulnerável e subalternizada.

O tijolo, elemento constitutivo da arquitetura residencial, é aqui submetido a um tratamento visual poético que, a partir da constituição material das obras que integram Parabrigar, converte-se, igualmente, em instrumento de destruição e revolta.  

A complexidade indiciária proposta pelo artista é particularmente intrigante em suas séries mais recentes Lucidez Difusa (2020) e Parabrigar. Nas obras a integrar essas séries, o narrativo e o poético articulam-se em uma tensão figural, que depende de um intricado  processo de retorização, uma vez que os elementos e indícios diegéticos – narrativos- são reduzidos, por sua vez, a uma espécie de indexicalidade de base metonímica, a saber, em Lucidez Difusa, o couro poderia tanto remeter ao corpo e à pele racializados, ao mesmo tempo em que, em muitas das obras que integram a série, assume formas que serpenteiam ondulantes como que a desafiar o fundo vítreo e cortante contra o qual se drapeja. Ele é alegoria que se comporta retoricamente de modo a produzir sua significação. 

As obras dessas duas séries não se filiariam facilmente à rigidez das categorias binárias produzidas pelo discurso teórico da arte ocidental, que tende a definir o abstrato como destituído de precisão referencial e o figurativo como capaz de veicular narratividade explícita. Em Lucidez Difusa, por exemplo, pode-se imaginar a violência que sentencia à marginalidade, pois que rasgos revelam o couro como carne, e se podem entrever, na pele curtida, feridas profundas a descortinar-se em meio à materialidade  do vidro, como  objeto poético e matérico a sugerir  infração territorial.

Esses materiais, cuja remissão à arquitetura se infiltra nos cacos de vidro, em ambas as séries e, na madeira de demolição e nos tijolos, no caso de Parabrigar, parecem problematizar em seu arranjo retórico, a brutalidade sistêmica do estado neoliberal e necropolítico (MBEMBE, 2018).

A interdição aos privilégios da moradia e consumo materializam-se como fronteiras que se infringem às custas da assimetria estrutural que gera a violência entre opressores e oprimidos. O limite que se pode transgredir como recurso último e inescapável a quem se oprime pode ferir. Essa ambiguidade oscilatória, como os tijolos em Parabrigar e o couro em Lucidez Difusa, são recorrentes nas obras de Sanvoy e compõem sua abordagem da matéria com que trabalha, investindo-a de retoricidade alegórica. A recorrência dessa estratégia caracteriza a poética de Sanvoy: um mesmo elemento – signo- se bifurca em sua ambiguidade.

A opressão assenta-se sobre a mais brutal violência e aos subalternizados nada resta senão o recurso à materialização visível (ótica) e, no caso da arte, visual (sintática) e retórica. A violência se dá como inversão, devolução invertida, especular. Só a reação devolutiva aparenta emprestar concretude à estrutura opressora.  Daí, que o artista recorra à essa estruturação intencionalmente hesitante da significação que se instala materialmente em suas obras como princípio capaz de emprestar os sentidos que se fabulam para o mundo que aí emerge. 

O que estas obras aparentam confirmar é o projeto estético e conceitual do artista, a saber, não se resignar à repetição acrítica da tradição artística ocidental, à herança da branquitude eurocêntrica e colonialista, ao mesmo tempo em que se revira essa tradição do avesso, dissecando-a, no intuito de compreender sua anatomia e sintaxe com rigor e profundidade.

Em larga medida, a obra de Helô Sanvoy desenha-se como uma alegoria interpretativa que se poderia descrever como o entendimento da linguagem herdada do colonizador com vistas a subvertê-la, invertendo-a e vertendo-a inventivamente, a ponto de desestabilizar os códigos que lhe permitiram o funcionamento historicamente, como se a descreve no texto de Chika Okeke- Agulu (2015).

O pensamento poético de Sanvoy apresenta manifestos domínio e engenhosidade retóricos, instrumentais e definitivos para o funcionamento e estratégia discursivos e alegóricos de sua obra, o que a distingue na paisagem artística e ativista contemporânea é  sua capacidade de enfrentar os dilemas embutidos no desmonte [de]colonial a partir de uma inteligência analítica,  em que as estruturas sígnicas, retóricas e morfológicas da arte ocidental veem-se submetidas a um cirúrgico, profundo e rigoroso [re]exame, resultando em uma  ressignificação, que se forja nos limites de sua obra,  de muitos de seus mecanismos de funcionamento tropológico e em uma redefinição de alguns de seus mais significativos binarismos estruturais, entre os quais, se sobressaem as fronteiras entre abstrato e figurativo, entre o literal e o metafórico, entre significado e significante.

Em Sanvoy, o mundo poético é [re]criação retórica, alegórica.

 

Referências:   

DE MAN, Paul. The resistance to theory. Foreword by Wlad Godzich. Londres & Minneapolis: University of Minneapolis Press, 2002.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Passés Cités par JLG – L’oeil de L’Histoire, 5. Paris: Minuit, 2015.

FONTANIER, Pierre. Les figures du discours. Introdução de Gérard Genette. Paris: Flammarion, 2009.

MBEMBE, Achille. Necropolítica- biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte. São Paulo: N-1 Edições, 2018.

MONDZAIN, Marie-Jose. Homo Spectator- ver, fazer ver. Tradução de Luis Lima. Lisboa: Orfeu Negro, 2015.

OKEKE-AGULU, Chika. Postcolonial modernism- art and decolonization in twentieth-century Nigeria. Durham & Londres: Duke University Press, 2015. 

REIS, Carlos. Dicionário de estudos narrativos. Coimbra: Almedina, 2021

WHITE, Hayden. Trópicos do discurso – ensaios sobre a crítica da cultura. Tradução de Alípio Correia de Franca Neto. 2. Ed. 1 reimpressão. São Paulo: EDUSP, 2014.

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