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30ª Edição do Programa de Exposições CCSP – Mostra 2020

 

Amanda Carneiro

Os objetos, carregados de intencionalidades e reveladores de relações sociais, são funcionalmente análogos à linguagem e operam um conjunto de códigos a serem desestabilizados na prática artística de Helô Sanvoy. É assim que o livro e a bandeira, o objeto físico e seus símbolos derivados, o registro em vídeo da palavra oral, ou a operação de coletar e a um só tempo produzir ausência da palavra escrita, são substâncias da produção do artista. Assim, os artefatos de uso cotidiano e suas matérias são deslocados e ressignificados a despeito ou a partir de suas objetividades. Negativados, amalgamados ou justapostos, tais objetos refletem sua operação em agir sobre um mundo já constituído e provocar dúvidas em torno de uma representação (pretensamente) fiel da realidade.

É o que se nota em “Três poderes”, de 2017. A operação, a princípio simples, tem efeito simbólico: ao entranhar um livreto do Novo Testamento a uma publicação da Constituição Federal de 1988, coloca-se em questão as complexas interlocuções entre estado e religião – neste caso o cristianismo –, mas igualmente a circulação visual e material do poder. O Brasil, no registro da lei, é um estado laico e, em tese, todas as práticas religiosas são respeitadas. Entretanto, quais são as religiosidades que se encontram em espaços hegemônicos de maneira trivial e ao mesmo tempo tão imposta? O trabalho alude a um processo político, sempre presente (embora com diferentes nuances) na história do nosso país e que se tornou tema crucial nas últimas eleições, quando a base evangélica ocupou um espaço tão importante e contraditório a ponto de modular o discurso e a postura de candidatos a cargos executivos e legislativos. Sobrepostos, esses documentos são tencionados em seus próprios graus de confiabilidade.

Provocar um olhar estranhado a fim de desvelar o que está velado permeou, ainda, a intervenção realizada por Sanvoy no monumento público que homenageia a figura do bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva Filho, localizado em frente ao Parque Trianon, na Avenida Paulista. Intitulada “Refazendo Mitos”, a ação realizada em 2020 retoma uma linhagem e uma história que conecta São Paulo a Goiás, estado onde nasceu o artista. Bartolomeu Bueno da Silva, o pai, foi o primeiro Anhanguera, alcunha que é uma transliteração de diabo velho em tupi, doada a ele por indigenas da região em razão de seu ímpeto genocida e transmitida ao filho. A despeito da violência que perpetraram, ambos foram inscritos na história como heróis e  presentificados em esculturas, nomes de avenida e até de universidade. Consta que Anhanguera, para amendrontar os indigenas, ameaçou queimar os rios da região e, como prova dessa capacidade, colocou fogo em um copo de água, que era na verdade um copo de cachaça. Ao registro em video dessa intervenção, o artista associa um outro trabalho seu, chamado “Invocar/Evocar”, propondo aos observadores que refaçam esse mito eles mesmos.  Ao incendiar um copo com água ardente, expõe-se, por um lado, o charlatanismo dos Anhangueras, e por outro, invoca o obervador a participar do rito e ressignificar a noção de verdade dessa anedota.

A transmissão de conhecimento em sua dimensão oral, narrativas míticas e genealogias aparecem também, embora agora iluminando outras dimensões, no trabalho “Estão sendo tecidos”, de 2018. Se em “Refazendo Mitos” Sanvoy fala da história oficial, aqui ele recupera memórias familiares a partir do depoimento de sua mãe. Enquanto trança os cabelos do artista, Maria Conceição da Silva compartilha um relato afetivo e doloroso, de uma vida que guarda em memória a experiência das pessoas negras sertanejas – que viveram com práticas escravistas muito após a abolição em 1888 – e suas estratégias de resistência.

O registro da história é tema constante, seja para reafirmar a experiência de luta das populações negras, seja para questionar discursos veiculados por mídias tradicionais que as negam. “Minuto de silêncio”, de 2018, desdobra uma pesquisa do artista com jornais, material que também da corpo à série “Notícias Populares”.  No primeiro, nota-se a seleção de periódicos que noticiam o assassinato da vereadora Marielle Franco, ainda hoje não solucionado. Sua fotografia aparece sem as informações relatadas por tais veículos. No segundo, do jornal conhecido por suas matérias sensacionalistas em torno da violência, restam apenas as imagens. O que elas dizem sem o suporte do texto que as acompanha?

Em “Quase tangível”, uma edição do livro “Pedagogia do oprimido”, de Paulo Freire, é coberto por cacos de vidro de um dos muros que separa a Universidade de São Paulo da cidade que a abriga. Na capa da publicação vê-se um homem negro e idoso nas fileiras da educação formal, quem sabe à procura da alfabetização no modelo inovador do pedagogo. Recoberto por material transparente e de aparência cortante, questiona-se o quanto os centros de ensino e pesquisa se conectam a procedimentos efetivamente populares.

“Escolhe a bandeira e renuncia” reinscreve o plano piloto de Brasília aos moldes do contorno do trabalho “Seja marginal, seja héroi”, de 1968, do artista Hélio Oiticica, apontando que, se as coisas não são objetos neutros e se cada um simboliza e evoca uma certa conduta, também podem evidenciar o quanto indivíduos estão investidos nelas e vice-versa. Tomando a temporalidade e a politicidade da matéria, Sanvoy alude a questões contemporâneas, iluminando suas contradições materiais e simbólicas.

 

 

Texto publicado no catálogo da "30ª Edição do Programa de Exposições CCSP". Centro Cultural São Paulo. 2020. São Paulo-SP.

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